Passamos seis anos na faculdade aprendendo Medicina, mas é somente quando chegamos ao internato que começamos a concatenar tudo o que foi abordado até então de uma maneira que seja aplicável ao paciente à nossa frente.
Colhemos uma história clínica detalhada, fazemos um exame físico completo e, a partir daí, formamos um diagnóstico diferencial, para então solicitar os exames complementares necessários, em busca de chegar a um diagnóstico final e definir seu tratamento apropriado. Passamos dois anos em enfermarias, ambulatórios e unidades de terapia intensiva exercitando essa abordagem ao paciente, buscando ampliar o nosso leque diagnóstico e o nosso conhecimento sobre a confirmação das mais diversas doenças e a escolha acertada entre as terapias disponíveis. Então, ao fim desse período, com o tão sonhado diploma nas mãos, começamos a trabalhar onde a grande maioria dos recém-formados inicia: dando plantão em emergência. E o choque de realidade é enorme: dezenas de pacientes esperando o atendimento, enquanto você tenta fazer a abordagem que você aprendeu o mais rápido possível (o que parece nunca ser rápido o suficiente), a enfermeira interrompendo o atendimento porque chegou um paciente na sala vermelha, você chegando lá e se deparando com um caso de insuficiência respiratória, sem um acompanhante pra lhe dar alguma informação que guie a sua conduta e todo o resto da equipe esperando que você diga o que deve ser feito. Tem início uma batalha mental consigo mesmo, pensando se o paciente precisa ser intubado, tentando lembrar a dose das drogas para a intubação, procurando decidir que outras medicações devem ser feitas, sem nenhum exame ou história patológica pregressa para basear qualquer decisão.
Chega, então, um colega mais experiente para ajudar e, em cinco minutos, o paciente foi avaliado, estabilizado, medicado, foram solicitados exames e ele vem discutir o caso, enquanto você ainda tenta desfazer o emaranhado de dúvidas que se formou no pensamento. Com os ânimos sob controle, você procura entender como deveria ter agido e, junto à enxurrada de incertezas, vem à frustração. Há os que, diante disto, decidem sair desse ambiente de trabalho o mais rápido possível, e há aqueles, como nós, que se sentem impelidos a aprender como conduzir com desenvoltura e precisão essas situações, e fazem disto o seu objetivo profissional.
Buscando chegar a este patamar, entramos na residência de Medicina de Emergência. Dentre as várias dificuldades que encontramos como iniciantes nesta especialidade, uma das mais marcantes é a necessidade de aprender uma nova maneira de pensar. Apesar de termos uma ampla intersecção de conhecimento com as mais diversas áreas da Medicina, o nosso objetivo primário frente ao doente e, como consequência, a sua abordagem, são marcadamente diferentes. O diagnóstico específico, tão perseguido e enfatizado durante toda a faculdade e dentro da maior parte das especialidades, nem sempre é possível, e muitas vezes não chega a ser necessário no contexto da emergência.
O nosso papel, enquanto especialistas, não é definir o que o paciente tem, mas sim o que ele precisa naquele momento. Devemos, antes de qualquer coisa, identificar se há alguma condição que ameace à vida e intervir sobre ela o quanto antes. Portanto, a tendência habitual de ranquear os diagnósticos diferenciais priorizando os mais comuns ou mais prováveis, pode se revelar uma armadilha. Precisamos, na emergência, sempre considerar o que de pior pode acontecer, para evitarmos ativamente que a ameaça se concretize. É neste momento que entra em cena o diagnóstico sindrômico. Pensar os sinais e sintomas do paciente desta maneira nos permite tomar decisões importantes quanto ao suporte clínico, à investigação e à terapêutica inicial, implementando prontamente as intervenções necessárias para que, posteriormente, tenhamos condições de aplicar o método clínico tradicional com a calma e o rigor que ele demanda. O tempo e os recursos são limitados e, por conseguinte, extremamente valiosos em nosso dia-a-dia.
Além de pensar, de maneira particularizada, a necessidade de cada paciente, é também nossa responsabilidade conduzir o fluxo do departamento de emergência como um todo, definindo as prioridades de cada doente com relação aos outros. O trabalho em Emergência é complexo, exige treinamento árduo, comprometendo, cooperação e sensibilidade. Mas, tanto quanto exige, ele dá em retorno: são poucas as áreas onde os resultados da sua ação terapêutica são tão dramáticos e imediatos, trazendo uma enorme satisfação e alimentando, a cada dia, a vontade de ser melhor para poder fazer mais por aqueles que buscam a nossa ajuda.
Dra. Nicole Pinheiro Moreira
Graduada em Medicina pela Universidade Federal de Campina Grande
Residente do primeiro ano em Medicina de Emergência – Escola de Saúde Pública do Ceará.