“Medicina de Emergência: a especialidade que invade os 15 minutos mais interessantes de todas as outras especialidades”
– Dan Sandberg, BEEM Conference, 2014[1]
Por que somos diferentes? Como enxergar a diferença entre a Medicina de Emergência e as outras especialidades médicas? Nós trabalhamos em um ambiente diferente, em horários específicos e com pacientes mais especiais do que qualquer outra especialidade. Nosso lema poderia ser: “Qualquer um, com qualquer coisa, em qualquer horário”[2]
Enquanto outros medicos se detém na pergunta “O que esse paciente tem?”(isto é, “Qual o diagnóstico?”), Médicos Emergencistas estão sempre pensando “Do que esse paciente precisa?”[3] Agora ou Em 5 minutos ou Em duas horas… E isso envolve uma cabeça diferente? Sim, porque o conceito de manejar pacientes com sintomas e não com diagnósticos é quase alienígeno para a maioria dos nossos colegas médicos. Sim, fazemos isso todos os dias, várias vezes durante cada plantão. Toda vez que me apresento a um paciente, nunca sei em qual direção as coisas irão se encaminhar e por isso mesmo às vezes sinto a necessidade de dar um aviso antes de começar:
Olá, Pessoa Desconhecida, eu sou o Doutor Joe Lex. Eu vou passar com você um tanto de tempo suficiente só pra saber se sua doença vai inventar de tentar te matar enquanto você está em minhas mãos, ou se devo interná-lo pra que sua doença possa tentar te matar na mão de algum de meus colegas.[4],[5]
Você não me conhece, eu não tenho intimidade com você, mas você deve confiar a mim sua vida e seus segredos, assim como eu confio que as informações que você vai me dar são honestas. Depois desse nosso encontro, provavelmente não nos veremos novamente. Você pode estar vivendo um dos piores dias de sua vida, mas pra mim é rotina. Eu posso esquecer de você minutos depois da alta, mas é provável que você lembre de mim por meses e anos ou até mesmo pro resto da sua vida. Eu vou fazer muitas, muitas perguntas. Eu vou dar o meu melhor para fazer as perguntas corretas, na ordem correta, de modo que eu possa tomar a decisão mais acertada. Eu quero que você me conte sua história, mas pra que eu possa entender a sua história, talvez eu tenha que interrompê-lo diversas vezes para esclarecer alguns pontos. Cada pergunta que te faço tem um motivo específico e na média, em um plantão de 8 horas, eu tomo cerca de 10.000 decisões conscientemente ou não – qual paciente prorizar, qual a próxima pergunta, quais manobras de exame físico vou fazer, se isso que escutei foi mesmo um sopro, qual exame vou pedir, qual exame de imagem eu quero ver, qual especialista não vai me devolver se eu te encaminhar, se essa enfermeira vai acertar a medicação e se eu vou lembrar de te dar o atestado quando te der alta… então se eu errar 0,1% das vezes, cometerei 10 erros hoje.[7]
Eu espero que para o bem de nós dois você tenha uma Emergência bem óbvia com sinais e sintomas bem característicos: gonorréia, sub-luxação patelar, dor torácica com uma Supra de ST bem óbvio ao ECG. Essas coisas eu reconheço e inicio o tratamento sem nem pensar. Se no entanto o seu problema for menos óbvio a probabilidade de tirar conclusões erradas é maior.[8]
Fico feliz em te informar que o corpo humano é bem resistente. Nós humanos evoluímos milênios aprendendo a sobreviver então, mesmo que eu erre inicialmente, a probabilidade de isso causar dano à você é menor. Foi Voltaire quem nos disse lá no século XVIII que “A arte da Medicina consiste em distrair o paciente enquanto a natureza cura a doença”. Isso continua sendo uma verdade em boa parte dos casos. Além disso, nos disse Lewis Thomas que “O grande segredo dos médicos, aprendido por internistas e compreendido pelas esposas dos internistas, porém ainda escondido dos leigos é que muitas doenças ficam boas sozinhas. O fato é que tudo já fica melhor na manhã seguinte”.[9]
Lembre-se, você não me procura com um diagnóstico, você me procura com sintomas. Você pode ter 1 ou mais das 10.000 doenças e afecções existentes e sejamos honestos: as chances de eu acertar com absoluta certeza não são boas. Você pode ter uma apresentação incomum de uma doença comum ou uma apresentação comum de um problema incomum. Se a doença estiver bem no começo, posso errar até coisas graves como um infarto ou sepse. Se você me esconder seus hábitos sexuais ou uso de drogas e álcool, eu posso não fazer as perguntas corretas e portanto chegar a conclusões totalmente erradas sobre o que você tem e sobre o que você precisa.[10] O caminho para a morte, por outro lado é bem direto – insuficiência respiratória, insuficiência cardiaca, do cérebro, do metabolismo… [11]
Talvez você esteja decepcionado por não estar sendo assistido por um “especialista”. Muitas pessoas acham que caso tenham um infarto deveriam ser atendidas por um cardiologista. Então eles acham que o sintoma de “dor no peito” é a senha para o médico de coração. Mas e se a dor for acompanhada de náuseas e falta de ar? E se essa dor não for infarto mas uma dissecção de aorta? Então entenda que você está sendo tratado por um especialista sim: nós somos exaustivamente treinados para diferenciar o banal do que causa risco à sua vida e o clínico do cirúrgico. Nossa Especialidade serve pra isso, nossa cabeça funciona assim.[12]
Se você insiste em perguntar: “o que eu tenho, Dr Lex?”, você pode ficar decepcionado com a minha resposta: “não sei, mas sei que é seguro que você vá pra casa” sem te dar um diagóstico ou sequer pedir algum exame. Sim, eu sei que se te der algum rótulo como “gastrite” ou “começo de pneumonia” você vai se sentir melhor, como se seu problema estivesse resolvido e até outros médicos ficarão mais felizes porque se prenderão a esse diagnóstico que dei e assim nunca saberemos de verdade.[13]
Mas aqui temos também algumas boas notícias: Eu e você estamos preocupados que o pior esteja acontecendo. Você teve uma dor de cabeça e pensou “Será que eu tenho um tumor cerebral?” ou você teve uma dor abdominal e pensou: “sera que é câncer?” Pois é, eu também pensei nessas hipóteses e sei que se você por acaso não escutar as palavras “câncer” ou “AVC” saídas da minha boca você vai me achar um idiota por não ser capaz de ler a sua mente e adivinhar que são essas hipóteses que te preocupam. Eu entendo que por mais banal que seja a sua queixa, você pode estar preocupado que seja algo sério, porque foi importante o bastante pra te fazer sair de casa e procurer assistência médica na Emergência[14].
Enquanto a gente conversa, seremos provavelmente interrompidos. Saiba que eu sou interrompido diversas vezes por hora – atendendo ligação de colegas, orientando o Atendimento Pré-Hospitalar, explicando minha prescrição à enfermagem ou posso ser chamado pra attender a alguém mais doente do que você. Vou me esforçar para que essas interrupções não nos atrapalhem. [15]
Usarei o meu conhecimento e experiencia para chegar as conclusoes corretas sobre você. Mas minha visão tem diversos vieses e conhecer esses vieses não é o suficiente para mudá-los. [16] Por exemplo, eu conheço a fisiopatologia da Embolia Pulmonar em detalhes mas a literatura me diz que vou errar o diagnóstico pelo menos metade das vezes. [17] E olha so que interessante: cometerei esses erros de diagnóstico quer eu pense rapidamente ou me detenha no seu caso analisando racionalmente. Emergencistas são reconhecidos por fazer diagnósticos rápidos e com pouca informação (Type 1 thinking).[18] A Psicologia cognitiva nos diz que podemos reduzir os erros usando raciocínio analítico (Type 2 thinking).[19] Na Emergência os dois produzem a mesma quantidade de erros e a chave do sucesso provavelmente é saber quando decider rapidamente, quando usar o raciocínio analítico e quando mesclar os dois [20]
Depois que eu terminar aqui, vou ao computador e provavelmente vou passar a mesma quantidade de tempo que fiquei com você escrevendo no seu prontuário. Eu preciso fazer isso para que o hospital seja remunerado corretamente. Quanto mais eu for cuidadoso com o meu registro, menos problemas teremos para cobrar do plano de saúde o nosso atendimento. Além disso seu prontuário pode ser inútil para outros profissionais se eu não me esforçar pra descrever fielmente suas queixas e todo o racional que direcionou seu tratamento. No meu plantão de 8 horas eu vou dar aproximadamente 4000 cliques. [21]
Como? Você disse que não tem plano de saúde? Ah, tudo bem. O Governo vai pagar seu atendimento emergencial – embora eu não tenha idéia de como isso vai acontecer – só sei que não posso te negar atendimento. Isso é arriscado para mim e para você, por motivos diferentes…
Olha, você veio ao lugar certo porque se você precisar de qualquer procedimento emergencial como intubação orotraqueal ou toracostomia, deixa comigo. Se precisar parir aqui mesmo ou que eu controle uma hemorragia grave, deixa comigo. Eu faço punção lombar, eu faço suturas, reduzo articulações luxadas, faço acesso central, marcapasso intravenoso, retiro corpos estranhos dos olhos, ouvidos e até do reto. Faço convulsões cessarem e seguro sua mão se estiver com medo. Eu te acompanho nos seus momentos finais se for o caso.[23]
A Medicina de Emergência meio que irrita outras especialidades, sabe? É que estamos lá 24 horas por dia, 7 dias da semana, e quando a gente vê necessidade, chama mesmo outros especialistas de sobreaviso. Sim, somos treinados para encher a paciência de medicos de sobreaviso quando necessário. [24],[25]
Ah, eu vi milhares de pacientes únicos nos meus quase 50 anos de experiência. Mas toda vez que penso em escrever um livro sobre a minha carreira eu paro e penso: “se fizer isso só vai conseguir adicionar mais do mesmo ao que já foi ditto – é que o que você aprendeu não pode ser facilmente ensinado e nunca vai ser facilmetne aprendido por outros. O que você considera sabedoria, outros consideram lugar-comum.” [26]
Autor Norman Douglas escreveu: “O que é a sabedoria se não uma coleção de lugares-comuns? Pegue 50 dos atuais provérbios e vais perceber que eles são secos e diretos. Eles encarnam no entanto a experiência da raça humana e aquele que se balize por eles erra muito pouco. Alguém já agiu assim e obteve paz por espelhar-se na experiencia de outros? Não, desde o início dos tempos! Devemos caminhar através de fogo” [27]
Ei, você já ouviu falar em John Coltrane? Ele era um músico sensacional que se consagrou como um dos maiores compositores do século XX. Ele começou modestamente imitando músicos mais velhos mas rapidamente amadureceu em sua originalidade. Ele escutava Miles Davis, Thelonius Monk, música Africana e Indiana, cristã, hindu e budista. E dessa mistura ele criou algo único diferente de tudo o que havia escutado antes. Coltrane mudou a história da música ao alterar o que as pessoas poderiam esperar da música. De maneira similar a Medicina de Emergência escutou a cirurgia, pediatria, terapia intensiva, obstetricia, endocrinologia e psiquiatria para criar algo único e mudamos a história da Medicina por mudar nas pessoas o que elas podem esperar da Medicina…
Agora que já dei meu aviso, Pessoa Desconhecida, te pergunto: em que posso te ajudar?[28]
Dr Joe Lex é Emergencista, Clinical Professor of Emergency Medicine, Temple University School of Medicine.
(Texto originalmente publicado em http://www.emdocs.net/em-mindset-joe-lex-thinking-like-an-emergency-physician/ Traduzido para o português e adaptado por Dr Denis Colares, Médico Emergencista.)
Referências / Leitura Complementar
[1] https://twitter.com/jeremyfaust/status/447822776447930368 Accessed 27 December 2015.
[2] http://www.amazon.com/Anyone-Anything-Anytime-Emergency-Medicine/dp/1560537108. Accessed 27 December 2015.
[3] http://emupdates.com/wp-content/uploads/2010/09/eThinking-Slides.pdf. From a talk by Reuben Strayer. Accessed 27 December 2015. See slide #12
[4] Alimohammadi H, Bidarizerehpoosh F, Mirmohammadi F, Shahrami A, Heidari K, Sabzghabaie A, Keikha S. Cause of Emergency Department Mortality; a Case-control Study. Emerg (Tehran). 2014 Winter;2(1):30-5.
[5] Olsen JC, Buenefe ML, Falco WD. Death in the emergency department. Ann Emerg Med. 1998 Jun;31(6):758-65.
[6] http://www.smh.com.au/national/the-day-i-meet-you-in-the-emergency-department-will-probably-be-one-of-the-worst-of-your-life-20151105-gkrbm7.html Accessed 27 December 2015
[7] Croskerry P. Achieving quality in clinical decision making: cognitive strategies and detection of bias. Acad Emerg Med 2002;9:1184–204.
[8] Phua DH, Tan NC. Cognitive aspect of diagnostic errors. Ann Acad Med Singapore. 2013 Jan;42(1):33-41.
[9] Thomas L. Your very good health. N Engl J Med. 1972 Oct 12;287(15):761-2.
[10] Croskerry P, Sinclair D. Emergency medicine: A practice prone to error? CJEM. 2001 Oct;3(4):271-6.
[11] Rosen P. The biology of emergency medicine. JACEP. 1979 Jul;8(7):280-3.
[12] Zink BJ. The Biology of Emergency Medicine: what have 30 years meant for Rosen’s original concepts? Acad Emerg Med. 2011 Mar;18(3):301-4.
[13] Croskerry P. Commentary: Lowly interns, more is merrier, and the Casablanca Strategy. Acad Med. 2011 Jan;86(1):8-10.
[14] Croskerry P. The cognitive imperative: thinking about how we think. Acad Emerg Med. 2000 Nov;7(11):1223-31.
[15] Chisholm CD, Collison EK, Nelson DR, Cordell WH. Emergency department workplace interruptions: are emergency physicians “interrupt-driven” and “multitasking”? Acad Emerg Med. 2000 Nov;7(11):1239-43.
[16] Croskerry P. From mindless to mindful practice–cognitive bias and clinical decision making. N Engl J Med. 2013 Jun 27;368(26):2445-8.
[17] Pineda LA, Hathwar VS, Grand BJ. Clinical suspicion of fatal pulmonary embolism. Chest 2001;120:791-795
[18] Berner ES, Graber ML. Overconfidence as a cause of diagnostic error in medicine. Am J Med 2008;121 (Suppl):2–33.
[19] Redelmeier D. The cognitive psychology of missed diagnoses. Ann Intern Med 2005;142:115–20.
[20] Norman GR, Eva KW. Diagnostic error and clinical reasoning. Med Educ. 2010 Jan;44(1):94-100.
[21] Hill RG Jr, Sears LM, Melanson SW. 4000 clicks: a productivity analysis of electronic medical records in a community hospital ED. Am J Emerg Med. 2013 Nov;31(11):1591-4.
[22] http://www.acep.org/Clinical—Practice-Management/The-Impact-of-Unreimbursed-Care-on-the-Emergency-Physician/ Accessed 27 December 2015.
[23]https://www.acep.org/uploadedFiles/ACEP/Practice_Resources/policy_statements/2013%20EM%20Model%20-%20Website%20Document(1).pdf Accessed 27 December 2015. See pp 44-47.
[24] Johnson LA, Taylor TB, Lev R. The emergency department on-call backup crisis: finding remedies for a serious public health problem. Ann Emerg Med. 2001 May;37(5):495-9.
[25] Asplin BR, Knopp RK. A room with a view: on-call specialist panels and other health policy challenges in the emergency department. Ann Emerg Med. 2001 May;37(5):500-3.
[26] Norman G, Young M, Brooks L. Non-analytical models of clinical reasoning: the role of experience. Med Educ. 2007 Dec;41(12):1140-5.
[27] South Wind by Norman Douglas. THE MODERN LIBRARY; Thus edition (1925). Page 176.
[28] Wolffhechel K, Fagertun J, Jacobsen UP, Majewski W, Hemmingsen AS, Larsen CL, Lorentzen SK, Jarmer H. Interpretation of appearance: the effect of facial features on first impressions and personality. PLoS One. 2014 Sep 18;9(9):e107721..